terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Capitulo treze: Cicatrizes.

Cherrie dormiu, eu não.

Eu até tentei, mas não consegui. Perdi as contas de quantas vezes me deitei e me levantei e cheguei até a comer duas barrinhas de cereal que Cherrie tinha na gaveta. Penteei meu cabelo, peguei meus fones de ouvidos, escovei os dentes, coloquei um pijama e troquei de volta para o meu jeans e minha camiseta vermelha. E nada me distraia.

Então quando o relógio do criado-mudo marcava quase uma hora da manhã, eu abri a porta. Por um momento até pensei que pudesse encontrar a figura de Marek no final do corredor, mas é claro que não o vi. Dã Gabriela! Pensou que ele fosse passar a noite toda vigiando alunas?

Então, caminhei para onde queria tanto ir. E bem, eu realmente esperava que ele estivesse lá, até porque levei um pouco mais de tempo que o necessário para encontrar a porta certa no corredor certo.

Mas quando vi as escadas espirais pude sentir um alivio.

Santa Glinda do norte! Vou dar um murro na minha própria cara se não parar com isso. É sério.

Só que no momento minhas mãos estavam bem ocupadas segurando o corrimão da escada, a iluminação não havia melhorada muito desde a última vez.

O sótão continuava lá, mas havia algumas pequenas alterações, as caixas podiam continuar empilhadas nos cantos mais escuros só me deixando ver seus vultos, mas era perceptível a diminuição da poeira e sob a clarabóia encontrava-se um colchão onde ele estava deitado.

- Se mudou para cá? - Perguntei.

- Às vezes eu me sinto fortemente tentando pela solidão, há uma sensação de paz nela. – Ele resmungou mantendo o olhar no céu. – Quando você quer fugir do mundo.

- Do mundo ou das pessoas? - Perguntei com um desejo extremamente pessoal pela resposta.

Ele sorriu.

- Oi Gabriela. – Ele virou seu olhar para mim pela primeira vez.

- Oi. – Murmurei me aproximando, ele ergueu-se rápido e se pôs sentando no colchão. Foi a primeira vez em que o vi desleixado, não que fosse um problema. Ele estava só com um jeans aparentemente velho e o cabelo despenteado. E caramba, Ben sem camisa é uma visão e tanto... Mas houve algo que me causou um grande incomodo.

- Ah não... – Resmunguei dessa vez quase correndo até cair de joelhos na frente dele. – Seu ombro. – Murmurei colocando minha mão sobre a pele dele, onde quatro faixas mais claras que a sua palidez normal de textura diferente diminuíam a perfeição do seu ombro.

- Eu sinto muito, é culpa minha... aaah, eu sinto muito.

- Acalme-se.

- Uma cicatriz. E uma cicatriz em você! Por minha culpa, me desculpe Ben, me desculpe.

- Ei, acalme-se. – ele repetiu segurando minhas mãos que avaliavam a cicatriz. – Eu não estou incomodado com ela e a culpa não é sua.

- Aquela coisa só te arranhou porque você foi até lá, era pra você estar bem.

- Eu estou bem. – Ele disse de uma maneira tão carinhosa e doce que foi impossível querer manter uma discussão.

E ele parecia mesmo bem, curado. Sem cansaço, lerdeza ou qualquer coisa que lembrasse nosso confronto da tarde. Com exceção da cicatriz. Mas isso foi um fato esclarecido quando reparei em pequenas bolsas de sangue vazias, empilhadas perto do colchão. Uma, duas, três, quatro, cinco...

- Eu estava fraco e... – Ele começou a falar acompanhando meu olhar.

- Eu comi uma barra de cereal porque estava com fome – Arqueei uma sobrancelha.

- O quê?

- Não sei. Você estava justificando seu jantar achei que devia fazer isso também.

- Você não rouba barras de cereal num hospital.

- Não, eu a roubei da gaveta da Cherrie.

- Obrigado. – Ele sorriu.

- Pelo que?

-Por tentar entender.

-Obrigada também. – Levantei minha cabeça para seus olhos.

- Pelo que? – Ele sustentou meu olhar

- Por ter ido atrás de mim, por não me deixar morrer, por se arriscar, por ser educado mesmo quando por culpa minha seu ombro ficou assim. Obrigado por ser você e me desculpe por ser eu. – Respondi encarando aqueles olhos verdes, impossível se cansar de encará-los. Já disse que são lindos, não? E ele os revirou me fazendo ter mais atenção no que falava.

- Acho que devo refazer meu pedido de desculpas, já que você na as aceitou mais cedo. Eu também fui um estúpido, um velho estúpido se preferir. – Ele sorriu.

- E eu uma pirralha mimada. Você não tem do que se desculpar.

- Tenho sim, fui grosso e presunçoso quando você veio falar comigo.

Tive um rápido flash de quando eu o procurei para meu primeiro pedido de desculpas. De quando ele me mandou ir para o inferno. A lembrança pode até me provocar certa dor de novo. – Então, desculpe por ter te ofendido, talvez eu tenha problemas com rejeição. – Ele sorriu.

- Acho que estamos ficando um tanto repetitivos.

-Também acho. – Ele riu e passou as mãos no cabelo, só ai eu percebi que continuava segurando seu ombro e puxei minhas mãos para meu próprio corpo. - Eu sempre tenho tanta coisa com a qual me desculpar. – Ele resmungou em um rápido relance de tristeza apareceu em seus olhos.

- Como o que? – Eu perguntei devido à curiosidade que seu pequeno comentário para si mesmo havia me causado. Afinal, o que eu conhecia sobre Benjamin?

- Como ter beijado você contra sua vontade aquele dia. É que... – E parou pensativo.

- O que? – Como se eu fosse desistir fácil assim.

- Eu não consigo pensar direito quando você está perto, as coisas só acontecem por impulso. Sinto muito ter te feito passar por aquilo, não pensei no que poderia significar para você.

- O que você quer dizer?

- Eu sou um vampiro, civilizado e que vive em comunidade, mas eu estou morto e bebo sangue. Não me admira que isso te cause nojo.

- Eu não tenho nojo de você. – Falei quase atropelando as palavras dele. Nojo de Ben? Ele pensava que eu tinha nojo dele? Minha imagem deve ser realmente muito ruim. – Eu sou uma bruxa, isso não é estranho pra você? Quer dizer, espécies diferentes. Não seria algo como um cachorro e um gato se beijando?

Ele riu. Sim, riu! Mesmo que a minha teoria fosse algo muito sério.

Não tive tempo e ficar com raiva, Benjamin se aproximou. Os dedos dele deslizaram até tocarem as pontas dos meus, o corpo a um palmo de distancia.

Ele não devia fazer essas coisas.

- Quando você olha para mim, o que você vê? – Ele semicerrou os olhos, agora sério.

- Vejo você, oras. – Ei, que foi? Era uma pergunta meio idiota da parte dele, não?

- O que exatamente você vê? Como eu sou? – Ele reformulou com urgência.

- Bem... Pele e... – Perdi o resto das palavras quando os dedos dele subiram, delicadamente, pelo meu braço.

- Pele. – Ele repetiu ainda com o toque carinhoso.

Eu tirei meu olhar de seus dedos e me concentrei no seu rosto.

- Cabelo... – Os dedos abandonaram meu braço e agarraram a ponta de um dos meus cachos.

- Cabelo. – Ele repetiu numa voz sedosa.

- Seus olhos. – Murmurei o fitando, aquela imensidão verde nem podia ser comparada aos meus castanhos sem graça. Benjamin se aproximou ainda mais, hesitante, como se quisesse ter certeza de que eu não ia pirar e brigar com ele outra vez. Mas eu não tinha nenhuma intenção de fazer isso de novo...

- Olhos. – Ele repetiu num sussurro quando aproximou seu rosto do meu. E fechei os olhos e senti a pressão dos lábios dele sobre minhas pálpebras.

- Lábios... – Sussurrei.

Ele colou a testa dele na minha, e eu abri meus olhos. Ótimo, acredite ou não ele estava abafando uma risada.

- Qual é a graça? – Afastei meu rosto sentindo a vergonha me consumir. – Porque você está rindo de mim?

- Não estou rindo de você, apenas me diverti com o som.

- Qual som?

- Do seu coração, está acelerado. E gosto de ouvi-lo. – Ele fechou os olhos e sorriu.

- Não é justo. – O tom saiu tão infantil que até me surpreendeu, ótimo! Se eu não parecia patética antes agora devo parecer uma idiota!

- Quer ouvir o meu? – Ele indagou se aproximando de mim de novo, gracioso feito um gato.

Esse cara não existe.

- Seu coração bate? Quer dizer, eu não quero te ofender, só que tecnicamente você não está... bem...

- Morto. - Ele deu de ombros. –Sim. A transformação... – Ele relutou um pouco para dizer essa palavra – Beber o sangue de um vampiro e morrer. Seu corpo perde as resistências e é mudado pelo vírus. Então acordamos, e enquanto mantemos nossa... dieta nosso corpo funciona. Mais forte, mais resistente, mais rápido. Mas com alguns problemas.

- Como a resistência ao sol... Por isso dói para você, sua pele não é tão... Adaptada.

- Sim. – Ele deu de ombros. – Mas qual seria a utilidade do sangue sem um coração para bombeá-lo? - Ele deu um sorriso tímido.

É, talvez não tenha sido a melhor hora para falar do organismo dele.

- Ei - Eu tentei imitar aquele tom de voz sedutor que ele usava, mas não deu certo.

Segurei seu queixo com o meu indicador e deixei minha cabeça deslizar até seu peito nu.

Tum, Tum,Tum, Tum...

Eu sorri involuntariamente.

- Eu só quero lhe dizer, que talvez não sejamos tão deferentes assim. – Ele sussurrou enquanto afagava meus cabelos.

Confortei-me no abraço dele e procurei por seus olhos antes de falar.

- Você é uma boa pessoa, eu sou detestável. – Resmunguei.

- Você não sabe muita coisa sobre mim. – Ele me puxou de forma com que eu ficasse mais próxima ao seu rosto. – E há coisas que você não pode saber sobre mim, me odiaria. Eu não quero que você volte a me odiar, mas também não pode pensar que eu sou um alguém que não sou.

- Você salvou minha vida, acho que posso confiar em você. – Deixei minha mão contornar seu rosto numa forma carinhosa. Não era algo que eu conseguisse evitar agora.

Ele segurou minha mão, mas seus olhos ficaram tristes.

- Você vê. – Ele firmou meu pulso sob a luz da lua, e a fraca linha da minha cicatriz se mostrou.

- Você vê? – Olhei para seu ombro e deixei os dedos da outra mão contornar os quatro traços do arranhão.

- Não é a mesma coisa. – Ele me fez olhar em seus olhos novamente.

- É como se houvesse algo dentro de você, algo... Sombrio que pode tomar o controle. Você não tem como fugir, só tem de lutar. Lutar contra si mesmo para poder ser você. – Balancei a cabeça – Isso tem algum sentido? – Tentei dar um meio sorriso.

- Sim. – Ele continuava sério. – Tem, ao menos para mim. Tem.

- Você está certo. – Estava me sentindo tão entorpecida pelo perfume dele que foi difícil me concentrar até para formar as frases. - Não somos tão diferentes.

Segurei em seus ombros e me confortei até ter seu rosto na altura do meu, eu sentia sua respiração calma e fresca contra minha face. Ele firmou o abraço ao meu redor, entendendo o que eu tinha em mente.

O toque dos lábios veio a seguir, o inicio de um beijo ritmado, calmo... Delicioso.

Eu o senti sorrir enquanto Ben me puxou e me deitou no colchão, deixando-me abaixo dele.

- Finalmente... – Ouvi um murmuro rápido que também me fez sorrir antes da sua língua encontrar a minha de novo.

Quem disse que um diamante era a coisa mais poderosa do mundo sobrenatural, nunca beijou Benjamin Bertrand.

Ele afastou seu rosto do meu e puxou meu pulso e beijou minha cicatriz.

- Ben... não é... ruim demais pra você?

- Ruim?

- O cheiro do sangue. – Eu queria buscar melhores palavras, mas não tive tempo de encontrá-las. – Quando você fica... Perto assim.

Ele pareceu pensar um pouco.

- Você não é humana. – Ele começou. – Cada criatura tem um cheiro diferente, os dos humanos são os mais... tentadores. Acredito que só as pessoas como eu são capazes de sentir as diferenças, o cheiro, o gosto. É como quando você está com fome e da de cara com seu prato preferido, eles são o maior problema. Entende?

- Entendo. – Resmunguei.

- E há também um motivo pessoal...

- Qual? – Perguntei tentando fazer uma cara presunçosa.

Ele se aproximou do meu rosto de novo e senti sua boca deslizar pelas minhas bochechas, até chegaram perto dos meus ouvidos.

-O desejo pelo seu corpo é maior do que pelo seu sangue. – Ele sussurrou.

Eu senti as mesmas bochechas queimarem e ele outro risinho abafado, deitando-se ao meu lado, puxando-me para perto dele, eu me aninhei no seu abraço, deitando minha cabeça em seu ombro.

-Ben, posso te pedir algo?

- O que quiser.

- Um dia, você vai me contar sobre você? Como, quantos anos você tem?

Ele suspirou pesadamente.

- Nasci na Itália como humano, fui transformado com vinte anos de idade. – Ele deu de ombros.

- Há quanto tempo foi isso?

- Há algum tempo. – Entendi que não conseguiria mais nada aquela noite.

Mas isso não era tão importante na verdade... Qual diferença o passado poderia fazer agora?

- Sabe, há uma coisa em que você é igual a sua avó. – Ele voltou a falar. – Bem, vocês são o oposto uma da outra, ela era calma e meiga. Mas tem uma coisa em que você são completamente iguais.

- O que?

- A coragem. – Ele beijou minha testa.

Eu nunca senti tanto orgulho de mim mesma na vida.

E também nunca tive tanta certeza de algo. Cherrie estava certa, Cherrie sempre está certa.

Eu estava apaixonada por Benjamin.

E nos braços dele, adormeci.

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